Abril 2021


Por Dr. Jorge Varanda

Quando cheguei ao Centro Hospitalar, como administrador hospitalar, em dezembro de 1979, ainda pude conhecer o antigo encarregado do pessoal operário, herdado do Hospital Termal, pelo Centro Hospitalar criado em 1971, pela fusão do Hospital Distrital com o Hospital Termal Rainha D. Leonor.

Recordo do Sr Luzio a ideia misteriosa que fazia do circuito das águas que nasciam no Hospital Termal, em contraste com os conhecimentos científicos adquiridos com a realização dos recentes furos de abastecimento de água termal ao Hospital.

O Sr Luzio, apesar de afastado da vida do Hospital, por  aposentação, reflectia a profunda ligação afectiva que o ligava ao Hospital Termal. Para se entender isso, há que recordar que o Hospital Termal herdara de Rodrigo Berquó uma equipa de pessoal operário de que o Sr. Luzio fora encarregado e que teria trabalhado no Hospital desde o fim da Monarquia.

Um dia deu-me uma informação preciosa, segundo a qual havia vários caixotes com azulejos que pertenciam às enfermarias de D. João V Hospital Termal e que a ampliação empreendida por Rodrigo Berquó, no final do século anterior, obrigara a retirar dos espaços originais. Os caixotes haviam sido guardados numa das chamadas cavalariças da Parada. Estavam, todavia, escondidos num monte de coisas lá arrumadas.

Mais tarde, quando do V Centenário do Hospital Termal, houve necessidade de esvaziar as ditas cavalariças, o que permitiu recuperar esses caixotes e empreender mais tarde a montagem do puzzle dos painéis com a ajuda de alunos da Escola de António Arroio. Felizmente esses belíssimos painéis ajudam hoje a engrandecer o espólio do Museu.

A outra história é um fait divers da memória do Sr. Luzio que havia ainda vivido os últimos anos da Monarquia nas Caldas da Rainha, quando a Família Real vinha a termas, ficando alojada no designado Palácio Real hoje adaptado a Museu. Trata-se de uma brincadeira dos Príncipes, D. Luís Filipe e D. Manuel. Para guardar a Família Real havia sempre uma sentinela que se perfilava em sentido sempre que o Rei, a Rainha ou algum dos Príncipes saiam do Palácio. Fazendo gala dessa prerrogativa, os Príncipes, ainda crianças, faziam uma brincadeira que era saírem e entrarem do Palácio só para verem a sentinela a perfilar-se, repetindo o movimento no seu espírito infantil.

Finalmente acresce um testemunho meu, passado algures nos meus anos 80, nas Caldas: um dia no caminho que fazia do meu gabinete para o Hospital Termal fui interpelado por um cidadão inglês que trazia um livro na mão, relativo às invasões napoleónicas e à ajuda que a Inglaterra deu a Portugal para expulsar os invasores franceses. Perguntava-me o cidadão inglês se aquele era o Palácio Real, pois tinha registado no referido livro que Wellington, no comando das forças britânicas tinha instalado no Palácio o seu quartel-general, numa determinada fase da guerra, provavelmente na fase de avanço para Lisboa.

Aqui deixo estas pequenas histórias para enriquecer a memória do binómio Palácio/Museu, edifício a que nos habituámos a chamar de Palácio Real, mas que ouvi noutros tempos designar de Palácio dos Infantes.

Humores e Odores: Ordem corporal e ordem social

Urinóis e escarradores atestam uma preocupação com a expulsão sistemática das secreções corporais. Esta preocupação associa-se à antiga medicina hipocrática, segundo a qual o funcionamento perfeito do organismo humano, assenta em quatro substâncias básicas que governam o corpo: o sangue, a fleuma, a bile negra e a bile amarela. A predominância de uma dessas substâncias provocaria a doença, pelo que a melhor terapia seria restabelecer o reequilíbrio das quatro forças, através da aplicação de sangrias, purgativos e laxantes.

Originais da China, os escarradores irão difundir-se pela Europa entre os séculos XVI e XVII. Visto no início como uma prática salutar, enquanto forma de expelir secreções nocivas, o acto de escarrar era publicamente tolerado e praticado, assumindo-se dessa forma os escarradores como peças de presença obrigatória. Com o avanço dos conhecimentos em microbiologia, o acto de escarrar passou a ser mal visto, considerado anti-higiénico e altamente potenciador da propagação de microorganismos, especialmente o bacilo de Koch, causador da Tuberculose.

“Ao lado de cada uma das camas havia bacios, também designados (…) “urinóis”(…). Nos primeiros anos de funcionamento do hospital eram de madeira (ex. 1525-1524), mas a partir de 1563 passaram a ser de barro vidrado. Parece-nos que a mudança (…) se deu não só por questões de higiene, como também para facilitar o processo uroscópico levado a cabo duas vezes ao dia pelo físico (…). O barro vidrado permitia ao físico analisar com mais facilidade a cor, cheiro e nebulosidade da urina dos doentes. (…)”

Rodrigo Berquó

Admirado por uns e odiado por outros, Rodrigo Berquó foi uma das personagens mais marcantes na história do Hospital Termal.

Retratado por Rafael Bordalo Pinheiro como um homem alto, forte, de cariz impressionante com as suas “botas descomunais” caminha “com passo determinado as praças esventradas e as ruas esburacadas” das Caldas da Rainha, pisando “impiedosamente o chão rasgado pelos aterros das novas construções, calcorreando incessantemente as obras lançadas. Num afã de quem varre tudo à sua frente e não conhece obstáculos inultrapassáveis, Berquó está pronto para derrubar qualquer barreira que se lhe erga na frente.”

Como refere João Bonifácio Serra, “De facto, um verdadeiro terramoto se abateu sobre a pacata vila das Caldas durante a gestão de Berquó.”

A acção de Berquó marca este período não apenas pelo magnífico plano de reforma de todo o complexo termal, mas também pela sua inabalável determinação, que ao longo dos 7 anos em que presidiu à Administração do Hospital Termal, garantiu que nunca cedesse ou se deixasse abalar pelas inúmeras dificuldades burocráticas, criticas, discordâncias, e tantas outros entraves que determinaram este trajecto. Esta determinação não seria, porém, insensível ao contexto em que actuava, mas a convicção da necessidade imperativa do plano que reforma termal para o sucesso futuro da instituição e da própria cidade, fizeram com que Rodrigo Berquó nunca se deixasse abalar.

Por certo que esta personalidade forte, chocou com a pacata vila das Caldas da Rainha. Refere João Bonifácio Serra sobre este contraste “Adoptando a imagem do dito chinês sobre o elefante e as porcelanas, dir-se-ia que o elefante, neste caso, não podia deixar de partir a louça…”.

O ambicioso projecto que Berquó se propunha concretizar, resultava de um conjunto de necessidades identificadas ainda na anterior administração por Francisco Eduardo de Andrade Pimentel. Em 1886 pede ao Ministro que nomeie uma comissão uma comissão de peritos para que se elaborasse um plano de obras para o hospital termal. A Comissão de Reforma ficou no entanto aquém do esperado, levando Pimentel a demitir-se em 1888, ficando Rodrigo Berquó, seu sucessor encarregue de concretizar todo o Plano de Reforma.

O conceito de termalismo alterara-se a partir do século XVIII, ampliando a sua acção terapêutica a áreas de lazer e de bem-estar. Grande parte do fluxo termal era agora composto por elites sociais, deixando de assentar basicamente no doente pobre que procura alívio para o reumatismo. Tratam-se de turistas endinheirados que procuram residência nos hotéis e casas da vila, fazendo da permanência termal tempo de férias a par com a rotina termal.

A chegada do caminho-de-ferro às Caldas veio potenciar essa nova dinâmica à vila. Refere O Diário Ilustrado e o Correio da Noite, em crónicas enviadas das Caldas e assinadas pelas iniciais A.M. que chegavam pessoas das mais variadas condições, “os elegantes ao lado dos miseráveis, clero ao lado da nobreza e do povo. Todos os hotéis se encontravam cheios, não restava uma casa particular para alugar, sequer um cubículo.”

“Apesar desta procura, na vila faltava tudo. O carteiro adoecera, os boletineiros eram analfabetos, pelo que os próprios veraneantes eram forcados a proceder pessoalmente nos Correios à escolha da correspondência. As ruas cheiravam mal e faltava todo o equipamento característico das entrâncias termais adiantadas: bons hotéis, chalés, “cottages”, “garden parties”, casinos, etc. (…) Apesar do afluxo crescente de aquistas, vila não dispunha de estruturas de acolhimento, e as suas ruas, em terra batida, mais pareciam autênticas cavalariças permanentemente envolvidas em nuvens de pó.”

O plano de recuperação assentará assim em três fases principais:

1º Transformação do Passeio da Copa num Parque

2º Instalação do Hospital Civil de Santo Isidoro em edifício de raiz, afastado do nucelo termal

3º Construção de um novo Hospital Termal.

Deu conta a Rainha a sua Santidade como no termo da Villa de Obidos havia huns banhos destruídos, e arruinados os quaes por falta de Enfermarias que não havia naquelle lugar não herão frequentados dos Enfermos para recuperarem a saúde, e ella vendo isto movida de santa devoção recuperara e reformara os ditos banhos com suas próprias despezas”.             

Jorge de São Paulo

As fontes de rendimento do hospital provinham dos géneros e rendas vindas das propriedades fundiárias pertencente ao hospital, e ainda pelas doações feitas pela coroa e pelos legados pios, deixados pelo povo e enfermos para a instituição.

As visitas da fundadora ao hospital e da sua comitiva foram presença frequente no Hospital de Nossa Senhora do Pópulo, no período compreendido entre 1518-1525. Uma dessas visitas ter-se-á prolongado por cerca de três meses, desde o início de Novembro (1518) a Março (1519).

O recurso a alguns documentos da época, como é o caso dos Livros de Receitas e Despesas, referentes a estes anos, permite-nos compreender as despesas diárias do hospital, e consequentemente o tipo de consumos alimentares que eram feitos pelos enfermos e pela comitiva real, aquando das referidas visitas, e quais as diferenças verificadas no referido consumo/despesas.

 A alimentação não era distribuída de forma igual por toda a população do hospital, variava caso fossem escravos e servidores, enfermos, frades, funcionários hospitalares, pessoas ligadas aos círculos reais, ou os próprios monarcas, que seriam sem dúvida alvo do melhor tratamento e servidos com as melhores iguarias.

A maximização dos recursos destinados aos doentes contrasta com a exuberância da alimentação das pessoas de estatuto social elevado que passavam pelo hospital. A análise dos Livros de Contas confirma que presença da Rainha despoletou o aumento das despesas, assim como uma maior preocupação relativa ao abastecimento de géneros, e permite-nos ainda ficar a conhecer os locais onde a rainha se encontrava, através dos produtos que lhe eram enviados pelo seu hospital.

A chegada da rainha causava sempre grande azáfama, segundo os documentos mencionados, alguns dias antes da chegada da fundadora foram ordenados gastos em:

– Lenha de Zimbro da Serra do Bouro, para queimar na “câmara” da rainha;

– Cargas de maças de várias qualidades de Aljubarrota;

– Roupas novas, para melhorar o aspecto dos trabalhadores do hospital ”novos vestidos de burel”;

A visita da soberana levou à alteração dos calendários de funcionamento do hospital, que nesse ano abriu duas vezes, sendo habitual abrir apenas uma. D. Leonor foi recebida com vários banquetes, e durante o período em que se manteve nas Caldas, o hospital transformou-se numa espécie de corte em pequena escala, gravitando à sua volta, muitas pessoas ilustres afluíram à vila. Os gastos foram bastante elevados, feitos à custa do hospital, sem contribuição da rainha. Durante este período as despesas com os enfermos, acabaram por passar para segundo plano, sendo dada prioridade à rainha e sua comitiva, assim como aos seus visitantes.

Quando deixou o hospital, a 14 de Março de 1519, o provedor continuou a enviar-lhe presentes até à data da sua morte. Quase todos os meses recebia alguma encomenda do seu hospital, entre queijadas, porcos, pipas de vinho, coelhos, empadas, peixe, pombos, marisco, vitela e muitos outros.

O Hospital das Caldas manteve um carácter rural ano início do século XVI, integrando os senhorios da Rainha, e quando era necessário monopolizava os recursos em função da própria, deixando em segundo plano os enfermos. Verificou-se portanto uma relação de reciprocidade entre a Rainha e o seu Hospital. A rainha deixou garantidas rendas, fez doações frequentes ao hospital, algumas em géneros provenientes de outras regiões do país, como a confecção de marmelada, as ameixas secas, os figos. Sempre que fosse necessário, sabia que seria recebida com pompa e circunstância para que nada lhe faltasse.

Não foi fácil dar resposta às exigências alimentares provocadas pela presença da Rainha no Hospital, e ainda que fosse a detentora daquele senhorio, muitas vezes os consumos da rainha e seu séquito, fizeram-se à custa das rendas do hospital. A estratificação social é visível nos consumos alimentares do hospital, que variavam em quantidade e qualidade de acordo com o grupo social a que se pertencia. O hospital não escapou às hierarquias da sociedade da época, ainda que a sua fundadora tivesse bom coração.

Bibliografia:

Jorge de São Paulo, O Hospital das Caldas até ao ano de 1656, vol.I Lisboa, Academia de Ciências de Lisboa,1967

Conde de Sabugosa, A Rainha D. Leonor, 2ª edição, Lisboa, Livraria Sam Carlos

Lisbeth Rodrigues, Os consumos alimentares de um hospital quinhentista: o caso do hospital das Caldas em vida de rainha D. Leonor, Trabalho elaborado no âmbito do projecto Portas Adentro: modos de habitar no século XVI a XVIII em Portugal