Maio 2021


Grato pelo desafio partilho aqui esta reflexão sobre um tema que, como cidadão que procura acompanhar a cidade que me acolhe, me é particularmente sensível.

Ciente da vastidão de perspetivas possíveis assumo, como observador, a importância do impacto das estruturas museológicas na firmação da identidade de um território, seja ele geográfico, social, económico ou emocional.

A elas cabe não só, mas também, a responsabilidade da recolha, catalogação, preservação e construção da nossa memória coletiva pilar estruturante da nossa comunidade. Por conseguinte instrumento inquestionável de construção de coesão territorial. Aqui reside também o seu potencial como fonte de recursos criativos que pode e deve ser materializado no desenvolvimento de estratégias concretas. Estas, face às exigências e objetivos do seu posicionamento na sociedade atual desejavelmente decorrerão na execução de objetivos operacionais a concretizar no território.

O retorno à “Localidade” e a necessidade de reconexão aos valores do património como resultado dos processos de globalização criam novos caminhos, perspetivas de reflexão e responsabilidades aos espaços museológicos. Assim, novas possibilidades surgem, algumas desejadas, outras nem tanto. Os portões dos museus assumem novas formas e desmaterializam-se, digitalizam-se. Surgem novos paradigmas e a comunidade assume uma dimensão sem precedentes. Novos canais trazem uma diversidade de públicos os quais nunca pensámos atingir e a comunicação assume formatos e características de “tempo real”.

Expressões como “self”, “glocal”, “stakeholders”, “desenvolvimento sustentável”, “bem-estar”, “participação”, “economia circular”, “Green Deal” e “Transição digital” estão na ordem do dia e determinarão o futuro/presente das políticas Culturais e Criativas da nossa cidade. Urge por isso articular recursos e flexibilizar procedimentos para que no futuro possam também contar a nossa história.

Nicola Henriques

Fundador SILOS Contentor Criativo, Caldas da Rainha

Historial, projecto e desenvolvimento

Paulo Henriques

Caldas da Rainha, Janeiro de 1997

(…)

Em cerca de cinco séculos de actividade o Hospital Termal foi engrandecendo o seu património construído, logo na rica Igreja de N. Senhora do Pópulo sucedida pelo edifício hospitalar com as suas magníficas piscinas, uma das quais dita ainda da Rainha, a sua mata extensa e o magnífico Parque D. Carlos I com magníficos pavilhões de finais do século XIX que a ambição megalómana de Rodrigo Berquó fez construir para outro hospital jamais ocupado com essa função.

Acima a Igreja de Nossa Senhora do Pópulo situa-se o Palácio Real, austera construção ritmada pelo vão das portas e varandas, fachada regrada por frontão triangular com as armas reais e duas rampas de escada que, acedendo ao jardim, monumentalizam o edifício.

Conforme nos informa o Dr. Bonifácio Serra «Do edifício primitivo, ”casa real de onde assistiu a Rainha fundadora”, pouco restará, além da designação popular: Palácio da Rainha. No século XVIII as comitivas régias preferiram as melhores casas da vila, enquanto o Paço seria ocupado pelos provedores do Hospital. Rodrigo Berquó, em 1890, ordenou a edificação de uma nova casa para estes últimos, e empreendeu obras profundas no Palácio, que procurou devolver à sua função original. Com a República, posta em causa essa função, o edifício esteve cedido a diversas instituições públicas, como o tribunal da comarca, atingindo uma situação próxima da ruina».   

Foi este edifício escolhido pela administração do Centro Hospitalar como lugar do seu futuro Museu, onde se irão preservar e apresentar ao público os objectos que se reuniram ao longo de cinco séculos de existência da Instituição, que dela vão dando notícia permitindo documentar a sua história.

Para recuperar o edifício do Palácio Real a Administração do Centro Hospitalar formalizou a sua candidatura ao Prodiatec – Programa de Infra-Estruturas Turísticas e Equipamentos Culturais – financiado pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional, e apresentou o projecto de recuperação do edifício da autoria do Sr. Arquitecto António Garcia dos Remédios que contemplava a reconstrução das coberturas, recuperação dos espaços interiores, regularização de outros, tratamento do espaço envolvente, dignificando o largo fronteiro ao edifício, articulando-o com novos espaços de lazer, equipados com zonas ajardinadas, alpendres, fontes e um pequeno hemiciclo ao ar livre.

O projecto arquitectónico foi aprovado em 1992 e a sua execução está actualmente quase completa, mantendo o edifício a expressão de residência nobre, nos seus espaços compartimentados, tectos de caixotes e tabuados, numerosas janelas abrindo-se ao exterior, portas e janelas pintadas a branco destacando-se dos diferentes vermelhões da parede.

O espólio que o Centro Hospitalar foi reunindo ao longo de cinco séculos da sua existência é constituído por Pintura, Escultura, Talha, Ourivesaria, Paramentaria, Azulejo, Documentos Gráficos, Mobiliário e instrumentos Médicos e Científicos.

Muitos dos objectos conservados foram equipamento da Igreja como são exemplo o notável conjunto de paramentaria quinhentista, ou a imaginária dos séculos XVII e XVIII, a par da talha e das alfaias litúrgicas oferecidas por D. João V, ou ainda a extensa série dos Reis de Portugal, saborosa iconografia dos monarcas pintada entre inícios do século XVII e finais do século XIX.

De qualidade desigual, a colecção equilibra-se com o acervo arquivístico e bibliográfico desde o Compromisso da Rainha D. Leonor de 1512, primeiro regulamento do Hospital até aos cartazes dos anos de 1930, documentando as vivências sociais de Caldas da Rainha, então recentemente elevada a cidade.   

Um primeiro trabalho de abordagem sistemática do espólio do hospital Termal foi realizado pelo Dr. João Saavedra Machado em 1980, então Director do Museu de José Malhoa, sucedendo-lhe um programa museológico realizado em 1982 pela Conservadora do Museu, Drª. Matilde Tomás do Couto, para um Museu da Cidade das Caldas da Rainha onde se propunha uma distribuição museográfica das peças por secções específicas da natureza dos objectos.

Em 1992 a Administração do Centro Hospitalar solicitou ao recém-criado Instituto Português de Museus apoio par ao projecto de Museu, tendo sido designado o Director do Museu de José Malhoa como coordenador do projecto, tendo a colaboração da Conservadora do mesmo Museu, Drª. Matilde Tomás do Couto, e da então Directora do Museu da Cerâmica, Drª. Nicole Ballu Loureiro, vindo a associar-se a Técnica Superior daquele Museu, Drª. Cristina Horta.

A análise do espólio a musealizar, assimétrico na sua qualidade e nos tempos históricos que cobria, e o enquadramento institucional do projecto do Museu, tornou claro o facto deste não se poder constituir como exclusivo museu de Arte, antes encontrando solidez programática na sua diversidade disciplinar como Museu de História de uma instituição e do lugar que à sua volta se gerou.

Assim e para um correcto delineamento do programa científico do Museu entendeu-se necessária a colaboração do grupo Património Histórico de Caldas da Rainha, notável núcleo de investigadores com trabalho na área da história local, que ficou representado pelo Dr. João Bonifácio Serra e a Drª. Margarida Gouveia.

Constituía-se assim a equipa de trabalho encarregada de estudar o programa do Museu, composta por profissionais da museologia e investigação histórica, a par do Administrador do Centro Hospitalar, Dr. Mário Gonçalves, grande impulsionador deste projecto que o entendeu não só como dever institucional mas também cívico, perante a população de Caldas da Rainha. Ficou definido o tipo de museu a instalar, de História, o seu âmbito, a história do Hospital Termal como centro irradiador do desenvolvimento das Caldas da Rainha, e a sua designação – Museu do Hospital e das Caldas.

Inaugurava-se a 20 de Maio de 1993 no edifício ainda não totalmente recuperado do Palácio Real uma primeira exposição temporária «O palácio Real e o seu futuro Museu» e aí, além de textos e fotografias documentando as obras de recuperação do imóvel, apresentou-se a estrutura do futuro Museu em painéis explicativos acompanhados por algumas peças de colecção distribuídas segundo sete núcleos definidos no programa científico, tratado cada um por seu autor:

  1. Antes da Fundação (século XIII-XV) – Drª. Helena Gonçalves Pinto
  2. A Fundação: Hospital, Igreja, Vila (1484-1532) – Drª. Matilde Tomás do Couto
  3. A rainha D. Leonor (1485-1525) – Drª. Matilde Tomás do Couto
  4. O tempo dos Lóios (1532-1706) – Drª. Margarida Gouveia
  5. O século das Reformas (1706 – 1820) – Drª. Cristina Horta
  6. As Termas da moda (1820-1930) – Arq. Jorge Mangorrinha
  7. Crise. À procura de um novo modelo (1930-…) – Dr. Luís Nuno Rodrigues

Dava-se uma primeira realidade física ao projecto de museu que, tornando público o espólio riquíssimo do Hospital Termal, contava através dele a história do lugar, contribuindo assim para a consolidação da memória colectiva da população.

Delineado o discurso museológico era preciso agora traçar a sua existência através do programa do Museu, adequando-o ao edifício já recuperado, debruçando-nos sobre a colecção, e planeando a exposição permanente.

(…)

O Museu do Hospital e das Caldas vem colmatar a lacuna de um espaço de preservação e estudo da memória antiga da cidade e que coube em herança patrimonial ao actual Centro Hospitalar das Caldas da Rainha. No actual panorama museológico nacional encontramos paralelo programático com outros museus de radiação local que pretendem fazer permanecer a memória dos sítios e das suas gentes, de que o Museu da Cidade de Lisboa pode ser o exemplo mais próximo e evidente.

Este novo Museu não deve contudo fechar-se em si, mas sim abrir-se à cidade, enquanto instituição que dela pretende guardar a memória, tornando-a presente não só pelas suas actividades próprias, reflectindo sobre o sentido e o destino do lugar, transformando-se em ponto de partida para itinerários pelas zonas históricas, de modo que o próprio património construído passe a ser visto como prolongamento do Museu.

De facto, e cumprindo a sua função primeira, o maior conhecimento e desenvolvimento do individuo e da sociedade pela consagração de valores de cultura e humanidade, o Museu do Hospital e das Caldas deverá funcionar não só como lugar de recolha, preservação, estudo, apresentação e divulgação de um património móvel e de uma memória histórica local, mas também como lugar aa partir do qual se parte à descoberta da cidade, visitando a Igreja de Nossa Senhora do Pópulo, o edifício do Hospital Termal, as Capelas de S. Sebastião e do Espírito Santo, os belos fontanários setecentistas, o Parque D. Carlos I e a Mata, patrimónios construídos e naturais, não se devendo esquecer o espectáculo efémero do belo Mercado da Fruta que diariamente anima a cidade.

Mais difícil do que criar uma obra é garantir a sua continuidade. Consegui-la será a prova da eficácia deste projecto que, com empenho, vimos desenvolvendo.

O Futuro dos Museus – Recuperar – Reinventar

“Uma colecção é um lugar. Mas não um lugar fechado ou um lugar estreito. Porque uma colecção é um lugar feito de muitos lugares, e de cada um desses lugares se chega por diferentes caminhos”
João Pinharanda

Analisar a pertinência do projecto Museu do Hospital e das Caldas, pressupõe ultrapassar a tendência para centrar a discussão em torno da importância histórico-patrimonial da colecção do Museu, esmiuçando antes a potencialidade em acentuar esse valor através da promoção de novos diálogos, muitas vezes de acentuados contrastes, que a gestão de um espaço museológico com estas características promove.

Implica também, por outro lado, contornar o excesso de focalização do desígnio de curadoria inerente a qualquer projecto museológico, privilegiando antes a experiência entre visitante/objecto/espaço e a consequente percepção histórico-espacial de um lugar: Caldas, que em última análise fornecerá os elementos fundamentais para a construção de cada diálogo.

No final, está sobretudo em causa perceber a legitimidade deste projecto, analisando os resultados no que respeita à adesão por parte da população local e circundante, na oportunidade de proporcionar um Serviço Educativo eficiente e numa maior procura por parte de um público social, cultural e etariamente diversificado. Sensibilizar e cativar a população para a história local e potenciar um maior envolvimento e aptidão para a generalidade das actividades culturais.

Como refere Simon Thurley, “O Património são as pessoas”. É pois neste fundamento que se compreende a amplitude do conceito de “ambiente histórico”: paisagem, jardins, parques, edifícios, usos e costumes, enfim todo um agregado de bens, que em conjunto constituem o património do Hospital Termal Rainha D. Leonor, e que nos traduzem aquilo que fomos e, acima de tudo, se assumem como elementos essenciais para concebermos o que pretendemos ser no futuro. O seu usufruto é pois factor essencial para a sua sustentabilidade presente e futura.

O entendimento do complexo patrimonial acima referido, só é possível à luz do conhecimento histórico e conjectural que motivou, não apenas o surgimento da própria instituição, o seu modelo de gestão, mas também a própria relação que com outras organizações foi promovendo ao longo dos tempos.

É na articulação dos diversos espaços que se alicerça a continuidade do Hospital Termal Rainha D. Leonor, justificando numa lógica de compromisso entre o passado e o presente, a preservação e modernização da sua vocação inata: o tratamento histórico-científico das temáticas assistenciais e da saúde, traçando desta forma as novas vias de modernização do termalismo e do estudo da História.

A perpetuação da memória histórica do Hospital Termal e da sua Rainha fundadora, traduzida no Museu do Hospital e das Caldas, assume-se como instrumento condutor da sua programação. O Museu desempenha assim um papel determinante na construção de identidades culturais, no encontro de raízes históricas que nos fornecem os instrumentos necessários à construção da nossa própria identidade.

O seu papel social, mais especificamente a sua componente pedagógica, deixa de ser focalizada apenas numa relação entre museu/publico que contempla numa atitude passiva; privilegiando antes uma relação activa, onde a partilha, a troca de saberes e experiências entre ambas as partes, se promovem.

Num momento em que somos confrontados com uma nova realidade de vivências sociais, onde novas dinâmicas despertam como soluções que se impõem perante os novos desafios vividos, é, agora talvez mais pertinente do que nunca, repensar a forma de viver e gerir o Museu.

Muitas têm sido as discussões em torno destes novos paradigmas, por vezes de aparente contraste: a experiência virtual, o acesso à informação de forma mais alargada, a portabilidade do saber, a distância e a apropriação, são conceitos que adquirem nova dimensão. No dia 18 de Maio de 2020 as actividades desenvolvidas em plataformas virtuais envolveram mais de 83 milhões de pessoas nas redes socais, dados do ICOM.

Se por um lado o distanciamento não é barreira ao conhecimento, permitindo até abranger um maior leque de público. Por outro, a vivência destes últimos tempos mostrou que são precisamente os maiores museus que mais terão sofrido com a quebra de visitas: menos 75% de visitantes, ao contrário dos museus de carácter comunitário onde essa quebra foi menos notada.

É por isso imperativo estreitar relações com a comunidade, reforçar a relação histórico-social, integrar as estratégias de educação e cidadania, investir no potencial criativo da cultura, alavancando soluções inovadoras, novas práticas de valor, em suma, novos modelos de gestão que garantam a sustentabilidade destes espaços. Os conceitos de apropriação e responsabilização ganham aqui uma nova grandeza e propósito.  

É esse o desafio que nos propomos, é esse o convite que vos deixamos.

Dora Mendes

Museu do Hospital e das Caldas

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O Hospital Termal de Caldas da Rainha assumiu-se desde logo como uma das instituições assistenciais mais notáveis do país, destacando-se desde cedo nos anais da história da assistência e saúde em Portugal.

O seu modus operandi, traduzido num conjunto de características organizacionais, funcionais e patrimoniais, tornam-na única no seu género, levando a que alguns autores defendam que se trata do primeiro hospital termal do mundo.  

É neste âmbito que se destaca o Livro do Compromisso, no qual o Hospital se apoiou não apenas para traçar as suas linhas orientadoras, mas também a forma de acolher e tratar todos os que, ao longo de mais de 500 anos, o procuraram.

O Livro do Compromisso, assinado a 18 de Março pela Rainha D. Leonor, reflecte as intenções e desejos que a rainha tinha no que concerne à gestão e ao modo como deveria decorrer o quotidiano do hospital de Nossa Senhora do Pópulo.

De forma geral, este manuscrito constitui-se como o primeiro documento definidor das normas pelas quais os diferentes “oficiais” ao serviço do hospital, se deviam reger, assumindo-se assim, como a lei-base desta instituição.

As regras inclusas no Compromisso eram transversais a toda a comunidade hospitalar durante os seis meses de cura. Caracteristicamente funcionando como uma instituição total, a actividadehospitalar obrigava a um ajustamento entre todos os que o habitavam, visando o cumprimento das normas estabelecidas pela rainha

Ou seja, as actividades levadas a cabo diariamente quer pelos servidores quer pelos enfermos faziam-se me bloco, estando todas elas orientadas para a prática das catorze obras de misericórdia, de resto invocadas no inicio do Compromisso.

No que ao quotidiano diz respeito, o Compromisso constitui-se como um riquíssima fonte de informação sobre as práticas diárias, seja ao nível das operações médicas, contabilísticas e organizativas, seja ao nível das tarefas domesticas.

Este documento manter-se-ia em vigor até ao reinado de D. José, altura em que seria reformulado pelo próprio marques de Pombal, prosseguindo no entanto o seu essencial.

Ainda que o Compromisso de 1512 estipulasse a abertura do hospital no primeiro dia do mês de Abril e o seu encerramento no último dia de Setembro, foi a partir do reinado de D. José, com o novo regimento, datado de 1775, que o hospital passou a abrir no dia 15 de Maio.

Dada a relação que sempre houve entre o Hospital e a Villa, muito provavelmente aqui se encontra a razão para decretar o seu feriado municipal a 15 de Maio.