Junho 2021


A designação de “Cura Termal” é utilizada a partir da segunda metade do século XIX, especialmente em França, por influência alemã da palavra Kure. O conceito associado refere-se a um período necessário para fazer um tratamento com água termal, que implica a permanência no local de existência das águas termais.

Aos “banhos” e às termas estiveram sempre associadas práticas que oscilaram ambiguamente entre a cura do corpo e o prazer, é nesta medida que a deslocação às termas é apontada por Armando Narciso (1994) – médico hidrologista – como o primeiro movimento turístico da viagem “da cura pelo prazer”.

No período renascentista, onde se insere a fundação do Hospital de Nossa Senhora do Pópulo, é apenas à dimensão da cura que se pretende dar enfase, ligando-a à esfera religiosa. Esta ligação, que confere às instituições termais da época um vinculo marcadamente religioso, manifesta na componente da Assistência Espiritual um dos factores mais importantes para o alcance da cura do doente.

A partir do século XVIII, assiste-se a um reabilitar das termas pela aristocracia, com as idas da corte a banhos, sendo este movimento acompanhado por uma mudança no paradigma do termalista.

Ir a águas” ou “ir a banhos”, acompanha assim uma transformação na forma de conceber as termas, deixa-se de ir apenas em busca das águas como único agente terapêutico e motivação primeira para uma deslocação, passado a cura a estar associada a outras dimensões.

A prescrição da “cura termal” estava assim associada á necessidade de “mudança de ares”, a qual implicava uma viagem. A importância desta viagem, tal como afirma Ramalho Ortigão na sua obra “Banhos de Caldas e Águas Minerais”, residia sobretudo na introdução de uma mudança da vida quotidiana, o que era mais facilmente conseguida através da viagem, considerada por si só um factor importante do tratamento, ou mesmo o seu primeiro momento.

A “mudança de ares” consistia, sobretudo para aqueles que viviam nas cidades, numa deslocação até ao campo, a qual gerou até uma nova forma de calendarização anual – a vilegiatura.

Vários autores escreveram sobre a vida nas termas no século XIX e inícios do século XX enfatizando a vertente lúdica, a procura do repouso e dos divertimentos, ressaltando até o papel preponderante do jogo e dos casinos no desenvolvimento destes lugares. Philys Hemphry é disso exemplo quando se refere, em 1815, ao conceito de “thakinga the cure”, que provocava nos visitantes das termas uma atracção maior pelos divertimentos sociais ai existentes do que propriamente pela busca da saúde.

As termas das Caldas não foram excepção a estas mudanças, sendo a Mata e o Parque locais privilegiados que proporcionavam aos aquistas a possibilidade de preencher as horas livres, ou complementar a sua recuperação, através de um conjunto de actividades físicas e desportivas que decorriam ao ar livre. Da mesma forma, o Club, sob um céu de vidro, respondia às necessidades de socialização durante a época termal.

Hugo Franco d’Araújo

«Thermas sem casino são thermas mortas, sem movimento e sem gente»[1].

Assim se traduzia, no início do século passado, a importância que a componente lúdica desempenhava nas estâncias termais, proporcionando aos seus frequentadores a possibilidade de preencher as horas de ócio e, até, de uma recuperação mais acelerada, considerando o conjunto de actividades físicas e desportivas que decorriam ao ar livre.

Nas Caldas, apesar de um aspecto assistencial reforçado, seguia-se igualmente esta tendência. Assim, a Mata e o Parque ofereciam espaço aos banhistas para a realização de actividades lúdicas, a céu aberto, enquanto o Clube, sob um «céo de vidro», respondia às necessidades de socialização durante a época termal.

Criado em 1837, o Club de Recreio tornara-se desde então o ponto de encontro da sociedade que ia a banhos nas Caldas, e nele eram admitidos os aquistas, a respectiva família e ainda outros convidados desde que, passando pela vila, ali se demorassem pouco tempo. Determinava o Regulamento que o Clube «se abrirá e fechará na mesma época em que se abrir e fechar o Hospital», funcionando todos os dias, entre Maio e Outubro, a partir das sete horas da manhã[2].

A oferta de lazer correspondia aos gostos e hábitos das primeiras décadas de novecentos. Nos seus salões tinham lugar jogos de cartas, como o whist, o bridge ou o voltarete, de tabuleiro, caso do xadrez, gamão ou damas, com espaço ainda para uma sala de bilhar e uma biblioteca. Na sala de baile, onde a noite atingia o ponto alto, existiam dois pianos, destinando-se um deles para concertos e outro para acompanhar os cotillons «as quadrilhas nas noites de baile» e uso dos «assignantes prendados»[3]. Na galeria central, que separava o gabinete do bilhar dos restantes espaços, coberta pela estrutura em ferro e vidro que lhe deu o nome, reunia-se a sociedade, lendo jornais, conversando, tomando chá e seguindo a velha máxima de «ver e ser visto».

O bem-estar dos seus utilizadores era assegurado por um conjunto de nove funcionários, incluindo uma criada para auxiliar a toilette das senhoras.

Mesmo durante o inverno, o Clube continuava a ser o local preferido pela sociedade e nele se realizavam os bailes de Carnaval, aos quais concorriam «as principais famílias desta vila»[4]. E se este era por excelência o espaço de convívio, o «fórum caldense», como lhe chamaram em 1910, os espaços verdes que o circundavam funcionavam como um prolongamento das salas, dando continuidade ao propósito de entreter os que faziam uso das águas.

O Parque, embora de acesso menos restrito que o Clube, encontrava-se igualmente sujeito a um conjunto de normas que deviam observar-se para o seu bom funcionamento. Durante o inverno os portões encerravam antes do anoitecer mas, na estação balnear, o período de abertura estendia-se até à meia-noite, sendo a entrada no recinto proibida aos indivíduos que «se não apresentarem decentemente vestidos, ou que manifestem indícios de embriaguez ou de loucura», aos que «tenham praticado actos dignos de censura», a mendigos e também a animais domésticos sem trela ou açaime[5].

Para além das áleas e dos relvados, o jardim dispunha de uma carreira de tiro, um recinto de patinagem e áreas destinadas à prática de diversos sports, entre os quais a patinagem, o ténis, o cricket, a malha e o ainda incipiente foot-ball. Outro dos atractivos passava pela possibilidade de alugar um bote e remar, sob o arvoredo frondoso, nas águas tranquilas do lago. Finalmente, o velódromo, erguido logo no início da administração Cymbron, na «epoca em que o cyclismo era o genero de sport mais cultivado em Portugal» destinava-se a «concursos cyclicos» que rapidamente, ao que parece, ficaram fora de moda[6].

No verão, montavam-se no Parque quiosques para a venda de refrescos e tabacos e pequenas barracas para jogos, teatro ou venda de quinquilharias. O terreno era cedido pelo Hospital, ao custo de 1$000 réis por metro quadrado, mas até mesmo estas concessões não livraram o Director do envolvimento em polémicas que resvalaram para as páginas dos jornais. Quando, em Julho de 1909, querendo José Leandro «armar a barraca», como ele e o sogro vinham fazendo há vários anos no mesmo local, e «foi-lhe respondido que o terreno a que alludia já tinha sido concedido, e portanto que pedisse outro», o episódio foi divulgado em numerosos jornais, servindo de veículo para renovadas acusações contra a direcção do Hospital. Curiosamente, esse mesmo José Leandro dos Santos Pereira era proprietário dos Echos das Caldas, periódico que atacava com frequência, por divergências políticas, a administração de Cymbron[7].

As tardes de Agosto e Setembro eram animadas com música ao ar livre, executada por uma banda militar, normalmente a da Guarda Municipal de Lisboa. Durante duas ou três horas, todos os dias, os músicos executavam um repertório composto por marchas, valsas e sinfonias. Em 1912, por exemplo, a execução das melodias coube, não à banda da Guarda, mas à do Regimento de Infantaria 1 que, pelo valor de 1.565$900 réis, tocou as peças mais apreciadas pelo público naquelas tardes de estio.

Durante essa época, o Clube também reforçava os programas musicais. Em 1909, Cymbron «contractou um magnifico quintetto, dirigido pelo notável professor sr. Palmiro»[8] e três anos depois foi a vez de um sexteto deleitar as damas e os cavalheiros que frequentavam o Céu de Vidro ao som de Mendelssohn, Schumann e Wagner.

À noite, quando o característico clima caldense o permitia, organizavam-se festas de recreio ou beneficência, com entrada paga e regras de admissão mais restritas. Com a electricidade instalada Parque desde 1904, as iluminações eram o principal ex-líbris destes eventos. As celebrações de 15 de Maio de 1913 incluíam, às 21 horas, uma «deslumbrante iluminação eléctrica na rua central do Parque Rainha D. Leonor, e fogo-de-artifício na encosta do pinhal»[9]. Noutra ocasião, os barcos que flutuavam no lago decoraram-se com balões venezianos, criando «um efeito bastante apreciado».

Outros eventos animavam ainda o calendário termal. Exposições, de que a mostra, em 1908, de  louças de Bordalo Pinheiro nos Pavilhões é exemplo, pequenos espectáculos de teatro e variedades, concursos, regatas no lago, torneios e ainda quermesses e bazares, como o que se organizou, logo nos primeiros anos da república, a favor da Cantina Escolar da vila, sucediam-se com frequência, transformando o Parque num dos lugares mais concorridos das Caldas.

Bem menos agitada, «povoada de grande variedade de árvores, com as suas ruas e carreiros atapetados de musgo» e «uma formosa alameda de plátanos», a Mata constituía outra grande zona verde ao dispor dos aquistas[10]. Obra de Berquó, ali dispunham os convalescentes de maior serenidade para os seus passeios, entre o murmurar da vegetação e o silêncio das pequenas clareiras.

Por outro lado, a Mata era palco de alguns eventos significativos da época termal. Exemplo disso era hipódromo, uma vasta área perto da alameda principal onde se realizavam, todos os anos, diversas provas hípicas que constituíam um importante momento na vida social caldense. Organizado por iniciativa do Conde de Fontalva, o torneio hípico realizava-se no começo de Setembro e contava com a presença de nomes ilustres onde se incluíam, até 1910, os membros da família real. Em 1908 já D. Manuel, ainda infante, assistira a vários «jogos sportivos» e em 1909 foi seu tio, D. Afonso, quem esteve nas Caldas «afim de assistir às duas ultimas provas do concurso hippico»[11]. No ano seguinte viria até a presidir ao júri da competição, que contaria novamente com a presença de D. Manuel, desta vez já na qualidade de monarca.

As provas hípicas de 1910 foram, por isso, largamente divulgadas na imprensa, mesmo na estrangeira e em particular na espanhola. O concurso estendeu-se por vários dias, tendo lugar, no primeiro, a prova de ensaio e o concurso de «carros d’aluguer». Da prova nacional, disputada a 4 de Setembro, saiu vencedor o tenente Jara de Carvalho, a quem coube um prémio de 150$000 réis. Ainda nesse dia, realizaram-se as provas de discípulos e de amazonas, a par da «Taça Conde Fontalva», um campeonato de ténis cujo vencedor foi, pelo segundo ano consecutivo, D. João de Macedo. No dia seguinte foi a vez das provas omnium e de campinos e do «grande prémio das Caldas da Rainha», este último atribuído novamente a Jara de Carvalho, que recebeu assim mais 350$000 réis. O concurso deu-se por encerrado perto das 17 horas. Por fim, no dia 6, organizou-se uma tourada, onde cavalos e touros dividiram o protagonismo.

Embora o hipismo fosse uma das actividades com mais destaque, a Mata era também o lugar de um torneio de tiro aos pombos, a «Taça D. Manuel», que em 1909 foi entregue ao «distincto sportsman» Brandão de Melo.

As cerimónias de entrega dos troféus decorriam nas salas do Clube e, estando a sua organização da administração hospitalar, era frequente a inscrição de verbas suplementares no orçamento da instituição para que esses prémios pudessem ser atribuídos aos vencedores.

Durante o Inverno, a Mata tornava-se um sítio bem mais bucólico, sob o céu nublado e o restolhar das folhas caídas. Por essa razão, fora da época balnear, os seus portões encerravam antes do pôr-do-sol.

Todavia, com semelhante rol de eventos durante a época de verão, não é de estranhar que o Club de Recreio, o Parque e a Mata constituíssem local obrigatório da sociedade caldense e dos seus hóspedes, fornecendo a maioria da oferta lúdica de que a vila dispunha.

Mesmo o cinema, que por aqui havia dado os primeiros passos no início do século, se encontrava instalado numa dependência do Hospital. Com efeito, surge em 1907 um pedido para a instalação de uma sala de projecção na Casa da Convalescença, propondo-se ao Hospital que ficasse com 10% das receitas obtidas com as matinées. Dois anos depois, o Animatographo Colossal instalado e em pleno funcionamento, exibia filmes «de grande sensação», como «Os terremotos na Italia», pelo preço de (…).

O Teatro Pinheiro Chagas, o Cyclo-Club e a Praça de Touros, a que se podem acrescentar os principais hotéis, eram os restantes pólos de animação na vila das Caldas.

O palco do Pinheiro Chagas procurava de facto dar resposta a uma necessidade que nenhum outro espaço conseguia suprimir. Inaugurada a 16 de Setembro de 1901 com um espectáculo amador que revertia a favor dos bombeiros, da banda da Guarda Municipal e do próprio Teatro, a sala possuía duas ordens de camarotes, 160 fauteils e mais 150 lugares de superior e geral[12]. Nela actuou, em 1909, uma «troupe d’artistas do Theatro D. Amelia» cujo repertório se compunha, por exemplo, «da engraçada revista em 1 acto Salão do Thesouro Velho» e já em 1913 seria a vez de uma companhia do Teatro do Ginásio ser aplaudida pelos caldenses.

Quanto às touradas, «só em 15 de Agosto se vê enchente à cunha, uns festejos por ocasião da vinda aqui de Suas Magestades e mais nada»[13].

O Cyclo-Club abria, desde 1 de Outubro de 1908, as suas salas aos amantes do sport, organizando uma tuna e passeios a várias localidades, entre elas Alcobaça, onde os associados poderiam «visitar o Mosteiro e fabricas d’aquella importante e laboriosa villa»[14].

Aos hotéis e pensões, como o Lisbonense ou o da Copa, cabia então alojar aqueles que podiam usufruir de todos estes divertimentos e gozar de uma estadia confortável enquanto estivessem a banhos. A questão menos favorável ao bem-estar dos aquistas aí hospedados parecia ser a das dietas que, constituindo preciosos auxiliares do tratamento termal, eram absolutamente ignoradas nos menús dos restaurantes..

A melhor alternativa aos programas habituais dos aquistas era a de fazer pequenos passeios aos arrabaldes da vila, como Foz do Arelho ou Salir, mas também a Óbidos ou Alcobaça. Em Salir, os excursionistas visitavam «um forte castello de que ainda restam ruínas no cimo d’um monte» e daí gozavam do «panorama delicioso e bello [que] é a formosa Bahia de S. Martinho»[15].

A Foz do Arelho começava, entretanto, a atrair as atenções de um maior número de banhistas. Apreciada pelas «excellentes condições climatericas» e pelas características da sua implantação, chegou mesmo a recomendar-se a instalação de um sanatório nas suas proximidades. Figuras como o industrial Grandella ou o Conde de Almeida Araújo, demonstrando a sua preferência pelo local, contribuíram em muito para o desenvolvimento de toda a região. Prova de que a Foz se tornava cada vez mais frequentada eram as carreiras de automóvel, estabelecidas de 1 de Julho a 30 de Setembro que, de 40 em 40 minutos, transportam todos aqueles que desejassem tomar banhos de mar naquela praia. Se por um lado esta iniciativa motivou a reparação da estrada que a ligava à vila, justificava, por outro, a instalação que entretanto se fizera de uma garage na Casa da Convalescença gerida, portanto, pelo próprio Hospital Real.

Nas proximidades, a lagoa de Óbidos, «que se póde comparar com muitos lagos da Suissa, onde há lindos chalets» atraía igualmente o interesse dos visitantes.

Como se viu, era, apesar desta oferta mais pitoresca, em torno do Hospital e do Clube que se concentravam os principais eventos e diversões das Caldas. Mesmo que a vida do Hospital se sustentasse nas «qualidades e renome das thermas e não no brilho das suas diversões», a verdade é que o «Céo de Vidro» e todos os que sob ele se distraíam, procurando esquecer as «agruras do rheumatismo», se havia tornado há muito um símbolo do microcosmos social que aqui se formava durante a época termal[16].

Os tempos foram mudando e o centenário edifício do Club de Recreio permaneceu, depois de albergar uma efémera Casa da Cultura, longos anos abandonado. Hoje, sob a recuperada abóbada de vidro, mesmo que não possa reviver os velhos tempos evoca, ao menos, diante do velho Hospital que lhe deu razão de ser, o espírito da belle époque que, volvidos cem anos, se desvaneceu lentamente na memória desvanecida das termas da Rainha e da República.


[1] Relatório da commissão nomeada pela portaria de 30 de Agosto de 1907…, Appendice ao Diario do Governo, n. 440, de 29 de Outubro de 1910, p. 8

[2] Regulamento do Club de Recreio, art. 1º

[3] Idem, art. 9

[4] Ofício n. 8, de  20 de Janeiro de 1910,

[5] Regulamento do Parque D. Carlos I e Matta, MHC-HDL, pasta A01, doc. XIV

[6] Syndicancia aos actos administrativos da Direcção do Hospital Real das Caldas da Rainha, Appendice ao Diario do Governo, n. 456, de 28 de Outubro de 1908, p. 3

[7] Echos das Caldas,de 5 de Julho de 1909

[8] O Circulo das Caldas, de 30 de Maio de 1909

[9] O Circulo das Caldas, de 14 de Maio de 1913

[10]O Occidente, de 30 de Agosto de 1911

[11] O Circulo das Caldas, de 3 de Setembro de 1909

[12] BASTOS, (…) Sousa, Diccionario do Theatro Portuguez, (…), 1908, p.353

[13] Cavacos das Caldas, de 15 de Setembro de 1896

[14] O Circulo das Caldas, de 30 de Maio de 1909

[15] Echos das Caldas, de 15 de Abril de 1909

[16] Relatório da commisão nomeada por portaria de 4 de Fevereiro de 1911…, Diário do Governo, nº 205, de 2 de Setembro de 1911