Dezembro 2021


Alberto Nunes Miguel, nasceu a 20 de Janeiro de 1932 em Oiã, Aveiro.

Mudou-se para as Caldas da Rainha onde trabalhou na Fabrica de Faianças Belo, local onde, reconhecida a qualidade de trabalho pelo seu patrão, este se dispôs a permitir que frequentasse o curso de pintura na Escola Comercial e Industrial Rafael Bordalo Pinheiro.

Esteve no Canadá e na Alemanha, em trabalho, durante alguns anos, regressando depois a Portugal onde se estabeleceu por conta própria com oficina cerâmica, desenvolvendo várias peças em parceria com a sua esposa, e mais tarde, com o filho Fernando Miguel e nora.

Inspirado em Bordalo Pinheiro, desenvolveu peças de grande originalidade, com elementos fortemente naturalistas.

Além do teor satírico inspirado em Bordalo Pinheiro, traduzido em figuras populares que exibiam os costumes do povo, dedicou-se ao estudo das azenhas e moinhos da região, reproduzindo-os em cerâmica vidrada e em terracota. Também as figuras de arte-sacra, os Presépios e a última ceia, foram temas trabalhados por Alberto Miguel.

Foi um dos elementos fundadores da Associação de Artesão das Caldas da Rainha, promovendo mostras de artesanato nas carismáticas Feira da Cerâmica e Feira da Fruta, e por inúmeras feiras de Artesanato por todo o país, contribuindo para o reconhecimento e afirmação da cerâmica caldense.
A titulo individual foram várias as exposições onde participou, levando as suas peças a diversas galerias de arte, nacionais e estrangeiras.

Alberto Miguel viria a falecer em 1997, de doença prolongada.

A arte cerâmica manteve tradição na família, mantendo-se o Atelier S. Miguel, no Formigal – Caldas da Rainha, onde é possível, não apenas visitar o núcleo museológico com peças de Alberto Miguel, mas também conhecer a arte cerâmica do seu filho Fernando Miguel, e nora, Milena Miguel.

HANSEN STORIES – UMA EXPOSIÇÃO QUE CONTA HISTÓRIAS EM TORNO DE UM HOSPITAL E DE UMA DOENÇA*

O Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro – Rovisco Pais (CMRRC-RP) foi criado em 1996, na sequência da extinção do Hospital Colónia Rovisco Pais (HCRP). Herdou todo o património da antiga Leprosaria Nacional e o dever de assistir os ex-doentes que ali continuaram a residir após a alta clínica. Desta herança nasceu a ideia, seguida por várias administrações, e sonhada por vários funcionários e ex-doentes de criar um espaço museológico.

Nos últimos anos, o CMRRC-RP, tem desenvolvido atividades de recuperação do património arquivístico, bibliográfico, fotográfico, científico e médico do antigo Hospital e recentemente abriu ao público, numa das alas da antiga capela o Núcleo Museológico do Hospital Colónia Rovisco Pais (NMHCRP).

No decorrer deste processo, tornou-se evidente a necessidade de adotar uma estratégia holística de recuperação e revitalização do património face a uma instituição (HCRP) com uma missão abrangente, em torno da qual gravitavam uma multiplicidade de histórias, vivências diversas e um conjunto considerável de fragmentos do passado. Foi neste contexto, que surgiu o projeto “Rovisco Pais old leprosy – a museological nucleus and storytelling website”, desenvolvido com o apoio da Sasakawa Health Foundation (SHF) – fundação japonesa que colabora com Organização Mundial da Saúde no combate à doença de Hansen em todo o mundo –, através do qual se deu início à partilha e divulgação pública de um legado singular, através do storytelling e da museologia. E, no âmbito deste projeto, foi concebido o website Hansen Stories, composto por uma coleção de memórias de ex-utentes e ex-funcionários do HCRP, recolhidas através de técnicas de história oral. A exposição Hansen Stories surgiu como uma das faces visíveis daquele “projeto centrado na memória das pessoas que o viveram”[1]. Nela se exibem catorze histórias orais inéditas, que revelam “na primeira pessoa” diferentes vivências em torno de uma doença e de um hospital.

O Hospital Colónia Rovisco Pais foi inaugurado em 7 de setembro de 1947 e adotou o nome do benemérito, que, deixando a sua herança aos Hospitais Civis de Lisboa, possibilitou a sua construção. Era um hospital especializado no tratamento e investigação da doença de Hansen, hanseníase ou lepra e a sua criação ocorreu num contexto de surgimento de hospitais especializados e de adoção de políticas de confinamento dos doentes contagiantes como forma de profilaxia[2], que, a médio prazo, originou a ascensão da leprologia moderna e a medicalização da doença. Possuía capacidade para cerca de mil doentes e a sua ação tinha uma abrangência nacional. Representou, na altura, um singular e importante projeto de saúde pública, e teve um papel decisivo na quase erradicação da doença em Portugal.

Implantado na Quinta da Fonte Quente (Tocha – Cantanhede), uma grande propriedade com cerca de 140 hectares, onde se situava uma antiga estância de férias dos frades crúzios, o HCRP beneficiou de um local amplo e abrigado, com uma lagoa, e condições ideais para uma colónia agrícola, que possibilitou a almejada autossuficiência. Por outro lado, situava-se próximo das regiões mais endémicas, os distritos de Leiria, Coimbra e Aveiro.

A sua estrutura e organização pavilhonar seguiu as orientações do relatório da Comissão da Lepra (1934-1938), dirigida pelo Diretor-Geral da Saúde, Dr. José Alberto Faria. O projeto, desenhado pelo arquiteto Carlos Ramos, contou com os contributos do modelo de medicina social, defendido pelo Professor Bissaya Barreto, presidente da respetiva Comissão de Obras, desde 1940, que, aquando da sua inauguração, o descrevera como uma “verdadeira lazorapolis, povoação moderna e higiénica, com tudo o que é preciso para tornar atraente a vida daqueles que renunciaram aos seus direitos sociais pelo benefício da coletividade”.[3] E, de fato, esta aldeia terapêutica, com condições de grande qualidade passou a ser a residência de centenas de doentes contagiantes, que a legislação portuguesa, por questões profiláticas, obrigou ao internamento. Ali dispunham de um hospital para 74 doentes; dois asilos para 90 doentes, cada, seis casas para 150 doentes com capacidade de trabalho; cinco núcleos familiares com casas para 270 doentes, capela; conventinho para a comunidade de Irmãs Filhas da Caridade, de S. Vicente de Paulo; serviços centrais, com cozinha e lavandaria; serviços administrativos e de assistência social e oficinas para doentes. Para as crianças dispunha de uma creche e preventório e para os funcionários um bairro residencial.

Neste Hospital-Colónia, a assistência aos doentes de Hansen abrangia aspetos educativos, profiláticos, terapêuticos e de reabilitação, assegurados pelos serviços clínicos e sociais. No domínio da assistência clínica, os doentes eram acompanhados por diversas especialidades, como nos deu conta a Enfermeira Mavilde Melo[4]. Além da dermatologia, existiam especialidades como a oftalmologia, a estomatologia, a otorrinolaringologia, a psiquiatria, a radiologia, a ginecologia e obstetrícia, a cirurgia geral e plástica, a que se juntavam tratamentos de fisioterapia efetuados no serviço de recuperação. O laboratório era uma peça essencial neste sistema, pois era o único a realizar testes para detetar o bacilo de Hansen e a produzir a lepromina, teste criado pelo japonês Mitsuda que permitia a identificação do tipo de lepra de um doente e o grau de imunidade ao bacilo em pessoas sãs. Sobre este serviço, nos elucidam as memórias partilhadas pelo Sr. Jorge Raínho, último funcionário do laboratório[5].

A par dos serviços clínicos internos, o HCRP dispunha de um importante serviço externo, assegurado pelas Brigadas Médicas, de que o Enfermeiro Mário Bexiga partilhou algumas recordações[6]. Eram compostas por um conjunto de profissionais de saúde e de serviço social, que percorriam o país, fazendo o rastreio de novos casos, o acompanhamento clínico e social dos conviventes de doentes conhecidos, ou de doentes que se encontravam nos seus domicílios. O seu principal objetivo era a identificação precoce dos novos casos de forma a iniciar o tratamento, o mais rapidamente possível, e assim evitar a existência de situações avançadas da doença, como as que se verificavam nos primeiros doentes internados no hospital. O trabalho destas equipas permitiu o conhecimento, no terreno, das condições dos doentes e do evoluir da doença, o recenseamento exaustivo dos doentes e a clarificação de alguns casos que tinham sido mal classificados no inquérito realizado pela Comissão da Lepra. O esforço resultou na identificação de 2.765 doentes de Hansen em Portugal até 1962, ou seja, quase o triplo dos que eram conhecidos e registados na Direção- Geral de Saúde quando o HCRP acolheu os primeiros doentes, em Outubro de 1947.

A introdução da sulfonoterapia, sobretudo a partir de 1955, criou condições para o gradual controlo da doença e a concessão de altas provisórias. Muitos doentes com lepra lepromatosa[7] puderam regressaram assim às suas residências, beneficiando de tratamento de reforço, fornecido gratuitamente. Contudo, era necessário garantir que o mesmo era corretamente efetuado, para evitar reinternamentos. Para o efeito, foi criado o Serviço de Enfermagem Domiciliária do HCRP, a partir de 1962, detalhadamente descrito pelo Enfermeiro Elias Paiva nas suas memórias[8].

No Hospital-Colónia os dias dos doentes eram pautados por rotinas da assistência clínica permanente e incluíam tratamentos, pensos, análises ou consultas. Aos domingos, podiam receber visitas e consoante a evolução do tratamento e o resultado das análises poderiam beneficiar de licenças ou altas provisórias, para irem a casa, visitar a família. Mas os internamentos prolongados, por um lado, e a existência de doentes com relativa autonomia, por outro, possibilitou o desenvolvimento de atividades de reabilitação educativa e profilática, de formação dos doentes, quer através da escola de adultos, quer através das oficinas e brigadas de trabalho e de atividades lúdicas materializadas em novas formas de terapia – a ergoterapia e a ludoterapia. O Serviço Social e a comunidade religiosa que residia no conventinho eram dinamizadoras destas atividades que potenciavam a sociabilidade na comunidade hospitalar, como referem as memórias partilhadas pela Irmã Maria Emília Bernardino[9] e pela auxiliar de serviço social, D. Maria Emília Monteiro Pais Alves[10]. Os doentes que podiam e queriam trabalhar, recebiam pelos serviços efetuados e com as quantias ganhas podiam ajudar as famílias, ou amealhar, para o recomeço de vida, quando tivessem alta hospitalar. Fernando Gomes, ex-doente, trabalhou como sapateiro, e contou o seu percurso na que ainda hoje é a sua casa[11].

Todas estas dinâmicas, que têm vindo a ser relatadas pelos entrevistados, nas suas memórias, contribuem para a preservação da história da última Leprosaria Nacional[12]. Considerada modelar pela comunidade internacional, como assinalou o Dr. Vítor Santos Silva, quando recordou o primeiro diretor daquele hospital, seu pai[13], foi elogiada, da seguinte forma por Raoul Follereau: “O Hospital Rovisco Pais é a mais bela instalação da luta antileprosa que tenho encontrado no mundo.” (…) Já fiz 17 vezes a volta ao Globo nesta missão de pugnar por tudo quanto diga respeito ao bem-estar dos leprosos. E nunca vi nada assim.[14]

As stories que integram a exposição Hansen Stories acrescentam perspetivas à história, fazendo-nos imaginar o que seria o quotidiano no Hospital Colónia Rovisco Pais. E, como quase todas foram recolhidas numa fase de confinamento, e apontam paralelismos entre o que se verificou com a lepra e o que vivemos com o Covid19, constituem importantes elementos para uma reflexão bastante atual em torno da forma como o ser humano encara a doença. Este terá sido também um aspeto positivo na adesão surpreendente que esta exposição itinerante tem verificado, a qual já tem pedidos de reserva até ao terceiro trimestre de 2022[15].

*Cristina Nogueira (CulturAge)

Curadora da exposição Hansen Stories e do Núcelo Museológico do Hospital Colónia Rovisco Pais


[1] Do discurso de inauguração do NMHCRP, proferido por Isabel bento, presidente do CA do CMRRC-RP.

[2] A lepra ou doença de Hansen como também é designada, foi durante muito tempo considerada uma doença contagiosa e hereditária. Apenas com a descoberta do seu agente etiológico – o mycobacterium leprae, por Gerhard Hansen em 1873, passou a ser identificada como uma doença microbiana.

[3] Bissaya Barreto. Quinze anos de obras públicas. Lisboa: Ministério das Obras Públicas, 1947.

[4] https://www.hansen-stories.pt/mavilde-enfermeira-de-corpo-e-alma/

[5] https://www.hansen-stories.pt/laboratorio/

[6] https://www.hansen-stories.pt/mario-de-miudo-a-enfermeiro-2/

[7] O tipo de hanseníase mais prevalente naquela época em Portugal.

[8] https://www.hansen-stories.pt/elias-enfermagem-sobre-rodas-2/

[9] https://www.hansen-stories.pt/irma-emilia-e-as-filhas-da-caridade-na-tocha/

[10] https://www.hansen-stories.pt/maria-emilia-e-o-servico-social/

[11] https://www.hansen-stories.pt/fernando-e-a-sua-segunda-casa/

[12] Continuamos a recolher testemunhos através da Campanha Hansen Stories – https://www.hansen-stories.pt/campanha/

[13] https://www.hansen-stories.pt/memorias-do-dr-santos-silva/

[14] Entrevista dada ao Diário de Coimbra em 1957 por Raoul Follereau (1903-1977), incansável protetor e reabilitador dos hansenianos, que visitou o Hospital Colónia Rovisco Pais em 1958 e 1967.

[15] Para reservas desta exposição: https://www.hansen-stories.pt/exposicao/

Frei  Fabrizio Bordin

O título surgiu-me nestes dias em que me foi pedido para transcrever uma conferência online partilhada com outros intervenientes, em Maio de 2020, logo a seguir ao primeiro confinamento provocado pela Covid-19. O tema era: “O que é que pode representar para nós este tempo de Lázaro?”.

O primeiro pensamento com que me deparei naquela altura, foi Lázaro de Betânia, irmão de Marta e Maria, que jesus ressuscitou depois de quatro dias “aprisionado e encerrado no sepulcro” (cf. João 11). Bombardeado constantemente com o convite peremptório para “ficar em casa”, também nós, nos sentimos “sepultados “ entre quatro paredes, experimentado uma certa morte daquilo que era o nosso viver anterior.

Relações, vida laboral, encontros de família e vizinhança, desporto, vida religiosa, lazer e viagens: tudo ficou parado, numa atmosfera surreal de vazio e silêncio.

E juntamente aos versos que à janela alguém cantava ou pintava, “vai ficar tudo bem!”, na verdade tivemos que lidar com sentimentos de medo, de insegurança, de tenção e, sobretudo para os mais idosos, de solidão. Tivemos que reconhecer que não somos donos de tudo, que a normalidade que ficava para trás era doentia, até patológica, feita de frenesim, ligada ao ter e ao aparecer. Tivemos a oportunidade de descobrir que o “sepulcro” de Lázaro de Betânia não era apenas um lugar de morte e de isolamento, mas sim um espaço de “gestação”, um seio materno para renascer, da noite escura do individualismo para uma nova luz de esperança e amor solidário.

Em 2021, iniciou-se o tempo da vacina, do sonho de debelar o vírus, com os nossos meios e conquistas. A vacina veio trazer serenidade para alguns, suspeita para outros, cavando ainda mais a divisão entre países ricos e países pobres. Entramos no tempo Lázaro da parábola de Jesus, cheio de chagas, que gostaria de apanhar algumas migalhas do pão que caiem da mesa do rico. Mas não consegue, porque infelizmente, muitas vezes, os animais têm prioridade (cf. Lucas 16).

A pandemia gerou mais pobres, quer nos países economicamente menos desenvolvidos, onde continuam a alastrar guerras e conflitos, quer nas periferias e aldeias do nosso Ocidente, sobretudo lá onde muita gente perdeu o seu emprego e não tem condições para pagar a renda, ou manter os filhos na escola ou chegar ao fim do mês com os gastos da alimentação e medicação.

Eis que o dia mundial do pobre que o Papa criou na Igreja, anos antes da pandemia, assume um significado ainda mais importante para nós cristãos, neste “tempo de Lázaro”! Há muitos Lázaros à nossa volta, anónimos e envergonhados, que precisão ser vistos e socorridos.

Este tempo de Lázaro de Betânia e do pobre Lázaro da parábola é o tempo propício em que somos chamados a sair da escuridão do sepulcro, reapropriando-nos de sentimentos de louvor e gratidão por uma vida que renasce, que se à esperança, à confiança e à solidariedade.   

 “Mensageiro de Santo António”, Ano XXXVII – Nº 10  Novembro 2021

São Lázaro de Betânia | Arquidiocese de São Paulo